sexta-feira, novembro 09, 2007

A Casa - Parte IV - Decifra-me ou te devoro!

Foi quando então pude ver aquele circo de horrores. Várias partes do belo corpo de Liena compunham, em meio a muito sangue, as mais belas obras de arte já produzidas pela humanidade. Sua boca me sorria através da enigmática Mona Lisa. Seus fartos seios enfeitavam o apolíneo corpo de Davi. Sua mão, por meio do indicador, tocava o dedo de Deus. Seu tronco e pernas haviam sido postos em Afrodite. Por fim seu rosto, desfigurado, era a face da Esfinge, de onde, logo que o fitei, ouvi um sussurro a me questionar:

- Por quê você me matou!?

- Como assim eu te matei?

- Decifra-me ou te devoro!

E logo que ouvi a ameaçadora sentença as obras tomaram vida e mi vi cercado pela esfinge e seu séqüito abominável. Deus, Adão e Davi se postaram atrás de mim, frustrando qualquer tentativa desesperada de fugir por ali. Mona Lisa, Afrodite e a Esfinge, à minha frente, lançavam-me uma tríade de olhares demoníacos. Busquei naqueles olhos sem brilho a resposta para aquele absurdo. Nada pude ver além do ódio que eles tão claramente estampavam. As lágrimas que me molhavam o rosto não serviriam como resposta e então me apressei em formular qualquer coisa em minha mente atormentada. Assim que ia falar aquilo que consegui organizar, a porta, que parecia a quilômetros de onde estávamos, foi aberta violentamente deixando passar um mulherzinha bem pequena. Olhos negros, cabelos loiros e compridos, dentes brilhantes. Sua voz, num tom messiânico, gritou:

- Foi por mim que você a matou!

No mesmo instante as obras voltaram a ser pedra e óleo.De Liena apenas algumas manchas de sangue a blasfemar o tesouro artístico daquela sala. Com a cabeça em turbilhão me aproximei da garota:

- Quem é você!?

continua...

sexta-feira, março 16, 2007

A Casa - Parte III - Sereia

O corredor de onde vinha a música era bem estreito. Nas paredes azul-marinho que o formavam, destacavam-se, entre peixes e outros seres aquáticos, grandiosos submarinos amarelos. A música parecia sair das suas pequenas janelas circulares, repetindo ininterruptamente. O desenho dos rostos dos tripulantes eram tão reais que pareciam estar observando quem por ali passava, como que prontos a lançar um torpedo a qualquer momento. Caminhei distraído com a música e com a bela arte aplicada naqueles desenhos até que um dos submarinos me chamou atenção. Seus tripulantes não mais olhavam para quem os observava do corredor. Apontavam com espanto para um ponto a frente do submerso. Ao mirar o mesmo ponto que eles estremeci mais uma vez. Liena, em forma de sereia, nadava no belo mar retratado na parede. Ao olhar nos seus olhos a música instantaneamente cessou. Ela então, com o olhar fixo no meu, começou a entoar um canto ininteligível numa voz que devia pertencer ao mais puro dos anjos. Das palavras que saíam da sua boca não entendi nenhuma. Era um idioma completamente novo e estranho para mim. Ela então começou a nadar na direção que levava ao fim do corredor. Sem que eu percebesse me pus a seguí-la. O canto tornava-se cada vez mais alto e proporcional a altura era a velocidade com que ela se afastava. Eu já corria tentando acompanhá-la mas minhas pernas perderam feio para sua brilhante nadadeira esmeralda. Já não a via, somente a ouvia quando de repente a cantoria parou. Corri ainda mais rápido e logo cheguei ao fim do corredor. Na parede não havia mais nenhum sinal de Liena, da sereia Liena. A porta que encerrava o corredor estava apenas encostada, empurrei-a apressado na ânsia de ver mais uma vez minha amada. Assim que a luz do ambiente por trás da porta chegou aos meus olhos quase fui ao chão, completamente desnorteado...

continua

sábado, junho 03, 2006

Contos do Velho Eddie - A Dança da Morte

Deixe-me contar uma história sobre algo muito estranho que me aconteceu. Certa noite vagava pelos sombrios pantanais como era de costume quando o álcool me dizia que a cama não era bom lugar. Divagava sob a forte luz prata da lua, com o olhar perdido a admirar o brilho intenso das estrelas e não percebi que algo, muito perto de mim, observava cada movimento meu. Alguém correu atrás das árvores e então a mão avalassadora do medo me jogou de joelhos ao chão. Me senti como um rato preso à ratoeira ao notar a sorrateira aproximação de um gato quando vi a figura espectral sair de trás das árvores e avançar na minha direção. Paralisado pelo horror nem relutei quando fui levado a um lugar profano onde logo cairia em desgraça. Lá haviam muitos daqueles vultos e então fui invocado a juntar-me a eles na dança dos mortos. Para dentro do círculo de fogo eu os segui e logo fui atirado ao centro das crepitantes chamas. O tempo parecia estar parado. Eu ainda estava entorpecido pelo medo mas não me ocorreu o ímpeto natural de fugir dali. O fogo não me machucava, mesmo quando eu andava sobre as brasas mais incandecentes. E quando senti que estava em transe meu espírito foi levado de mim. Era algo extraordinário, ah se alguém pudesse ter testemunhado o que se passou naquela noite. E então eu dancei e cantei com eles. Todos tinham a morte em seus olhos. Eram figuras sem vida, mortos-vivos recém chegados do inferno. Meu espírito ria e uivava sob o meu corpo morto-vivo que dançava com os mortos a dança da morte. Então todos nos reunimos no centro do ardente círculo e meu espírito voltou a mim. Eu já não sabia se estava vivo ou morto e então a aflição, percebendo que o transe tinha me deixado, voltou para me visitar. Por sorte um indescrítivel ruído cortou o ar e, chamando atenção daquela horda demoníaca, tirou aqueles olhos mortíferos de cima de mim. Corri como nunca, como o vento, para todas as direções. Só não corri para trás, eu não me atreveria a fazê-lo, continuava sempre à frente. Acho que nunca saberei porque eles me deixaram partir ou o que causou aquele estranho ruído que me permitiu fugir, mas nunca mais dançarei até que eu dance com os mortos.

sexta-feira, maio 19, 2006

A Casa - Parte II - Yellow Submarine

Com o olhar perdido e opaco ele me apontou um canto da grande sala e disse entre os dentes:
- Siga os submarinos amarelos.
Balancei a cabeça negativamente como quem diz "coitado" e me levantei sem esperança nenhuma de ver por ali qualquer coisa amarelada. Fui em direção ao lado mais claro do salão e só agora percebia como era grande. As paredes cobertas de quadros certamente pintados por grandes gênios. Esculturas acotovelando-se aos quatro cantos. O lustre daquele lado, como o astro rei, dava vida ao ambiente inundando-o com sua quente luz. Além da majestosa escada central a sala tinha acessos a vários outros compartimentos através de estreitos corredores e de inúmeras portas das formas mais variadas: madeira, ferro, vidro... mas nenhuma delas era tão imponente quanto a grande porta central. Na forma de uma ferradura, media uns cinco metros de altura e deixaria passar confortavelmente seis fortes homens lado a lado. As trancas metálicas deviam pesar tanto quanto as duas folhas de madeira que a compunham. Atraído pelas letras em tom escuro entalhada no grande portal, me aproximei e então de perto pude ler:
Per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l'etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse il mio alto fattore:
fecemi la divina podestate,
la somma sapienza e 'l primo amore.

Dinanzi a me non fuor cose create
se non etterne, e io etterno duro.
Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate.

Li sem quase nada entender daquela língua estrangeira, mas tive uma forte impressão de já ter visto aqueles versos em algum outro lugar. Pensei em tentar abri-la mas as imensas trancas que a cerravam pareciam gritar em coro para mim que eu não iria conseguir, então dexei-a e olhei com mais confiança para as portas do outro lado. Uma delas devia levar a Liena. Tomei o último trago de rum que ainda me restava e fui em direção a uma das portas. Ao passar por um dos corredores ouvi uma música que logo julguei conhecer. Parei ali e logo me vi cantarolando: "... we all live in a yellow submarine / yellow submarine / yellow submarine...". Olhei para o soturno músico que agora exibia um tímido sorriso. Agradeci-o gestualmente e segui corredor a dentro.
continua...

sexta-feira, março 31, 2006

A Casa - Parte I - Liena

A chuva caía como se estivesse sendo arrancada a força do escuro céu que me cobria e como em todas as três noites anteriores lá estava eu guiando meu velho carro quase às cegas por conta de uma excessiva embriaguez. Estava completamente perdido na estrada que seguia quando o maldito motor insistiu em não querer mais funcionar. Sem tanta preocupação, peguei a garrafa de gim no banco de trás e saí para chuva pensando em conseguir ajuda. Esperei à beira da estrada tempo suficiente para secar meia garrafa mas ninguém apareceu. Nenhum carro, moto, caminhão, carroça, bicicleta, nada, a estrada era um Saara asfaltado. Então decidi seguir em frente, andando, movido a gim. Há algumas centenas de metros depois de onde tinha partido, uma estreita estrada de terra cortava a densa mata que margeava a rodovia e resolvi seguir por ela, com o pensamento de encontrar algum sinal de civilização por ali. A lanterna que eu levava em uma das mãos já começava a falhar quando eu percebi dentro da mata dois pequenos pontos brilhantes que logo se transformaram em quatro, seis, oito, dez... Quando os cinco lobos saíram do mato eu já corria desesperadamente pela estrada enlameada. Sem nenhuma chance de vencê-los na velocidade entrei na mata à procura de abrigo, mas não havia nada ali além de grandiosas árvores. O rosnado do lobo mais adiantado já me gelava os ossos quando caí em um rio até então invisível a mim. As geladas águas do rio me salvaram das feras mas minha
alma parecia querer livrar-se ainda aquela noite do meu corpo porque pouco depois de entrar na água, e arrastado por uma forte correnteza, me vi caindo de uma altíssima queda d'água. Já sem esperanças e tentando em vão agarrar-me à coluna de água que me empurrava para baixo percebi uma corda que descia por arás da cachoeira. Consegui milagrosamente segurar-me na corda, que pela aparência, julguei ser de algum praticante de rapel. Desci pela corda os poucos metros que faltavam para o fim da queda e à certa altura do rio lá embaixo a parede da queda deixou de existir dando entrada para uma ampla caverna.
Segui tateando às escuras pelo rochoso túnel e logo percebi uma tênue luz um pouco a frente. Fui em sua direção e lá chegando percebi que a luz saía por baixo de uma imensa porta de madeira. Empurrei a porta sem convicção mas para minha surpresa ela gentilmente se abriu deixando à mostra um pequeno cômodo, iluminado por tochas, onde se encontrava, procurando algo em uma das estantes dali, um homem gordo de longos bigodes. Perguntei se ele me mataria, ironizando a mim mesmo pelo que já tinha passado aquela noite. Ele respondeu muito gentilmente que não, que na verdade estavam à minha espera. Estranhei um pouco a resposta, mas encarei como sendo bem melhor que um lacônico sim. Ele me conduziu a um rudimentar elevador a um canto da saleta e o fez subir sabe-se lá quantos andares. Quando o elevador parou saímos em uma ampla sala onde trigêmeos, desafiando Isaac Newton, tocavam música clássica sentados no teto. O mordomo me conduziu a uma cadeira e pediu que eu esperasse dizendo que logo a casa iria estar repleta de convidados. Perguntei o que tinha para beber e diante do "qualquer coisa que eu desejasse" escolhi um rum de fabricação pirata da época das grandes navegações. Ele bem eficiente me trouxe além da bebida, roupas limpas e secas. Troquei de roupas e fiquei ali na sala, ouvindo o agradável som que vinha do teto e saboreando o rum com a esperança da casa se encher de interessantes convidados.

Depois de alguns goles da fortíssima bebida que o gentil mordomo me trouxera vejo-o recebendo na grande porta principal uma mulher. De onde eu estava, a uma certa distância da porta, e ajudado ainda também pelo álcool, julguei estar vendo aquela que amei. "Ah, como era bela minha amada! Acho que os deuses a levaram por puro capricho. Não permitiriam a um simples mortal gozar do amor de tão bela mulher". Quando o mordomo deixou a mulher que me trouxe saudosas lembranças de minha finada noiva pude olhá-la com mais clareza e quando o fiz a pulsação no meu peito esquerdo saiu para passear. Atordoado, nem conseguia me mexer ao ver novamente aquele rosto que, como o de Helena, lançaria mil barcos ao mar. Era ela, sim, ela! E trajava o vestido que eu havia lhe dado há poucos meses para o nosso casamento. Mas como podia ser? Estava bêbado, não louco! Eu a vi, morta, dentro de um caixão. Eu chorei sobre seu corpo pálido. Eu não durmo desde que ela se foi. E agora a via, tão viva como fora em vida. Ela veio em minha direção, e a cada passo que dava, mais transtornado eu ficava. Tentei levantar para abraçá-la, mas minhas pernas não obedeceram. Tentei falar-lhe, mas como as pernas, minha boca não se mexeu. Ela chegou bem perto e sentou-se ao meu lado. Encarei-a com um misto de horror e felicidade, sem saber o que fazer. Um dos trigêmeos que tocavam no teto sentou-se perto de nós dois e ao fazê-lo me desviou um pouco daquele eterno instante de agonia. Olhei para ele e imediatamente voltei-me para ela. Duas palavras saíram como que fugindo da minha boca:
- É você!?

O espectro de Liena, conforme julguei ser aquela aparição, me deixou sem resposta. Apenas me olhava fixamente ansiando por alguma coisa mais expressiva que o 'é você'. Eu simplesmente não sabia o que dizer. Seus olhos negros de outrora brilhantes agora tinham um aspecto sombrio, mórbido, assustador. E ela os atirava como flecha sobre os meus que começaram a inundarem-se em lágrimas brotadas em emoções indescritíveis. Quando senti que ia deixar escapar mais umas palavras veio até nós um rapaz, aparentando um mochileiro, e perguntou alguma coisa que eu em meio aquela tempestade cerebral não pude entender. Ele virou-se para o músico que sentara-se ali perto, mas este, meio que em transe, também pareceu não lhe entender. Ele virou-se e no mesmo instante veio caindo alguém da escada, gritando como um louco. O mochileiro pareceu ir lhe prestar algum auxílio mas logo subiu as escadas. Perdido nesses instantes entre a chegada do mochileiro e a queda na escada voltei-me para a fantamasgórica Liena. Mas pra onde ela foi!? Já não estava ao meu lado. Enxuguei as lágrimas e olhei ao redor, mas nem sinal dela por ali. Acenei para o músico que ainda estava ali, meio que nas nuvens, e perguntei:
- Viu pra onde raios ela foi?
continua...

terça-feira, dezembro 06, 2005

O Andarilho

Caminhava a esmo. Sem rumo, sem direção, sem um porquê. Apenas caminhava. Desde o fatídico dia da morte de sua amada mãe pôs-se a vagar mundo afora. Deixou para trás a vida confortável que levava para tornar-se, conforme seus pensamentos, um filho do mundo. Tinha pouco tempo que atravessara a puberdade quando ficara órfão. Agora, já perto dos trinta anos, não achava que o mundo fora-lhe um bom pai. Estava mais uma vez contemplando o mar, sentado na areia, como sempre fazia quando conseguia embriagar-se. Tirou do bolso de sua imunda e esfarrapada bermuda um dos cigarros que encontrara há pouco numa mesa solitária de uma das barracas da praia. O distraído fumante não esquecera fósforos ou isqueiro. O andarilho pôs o cigarro apagado no canto da boca, tragou o ar puro da praia e imaginou a fumaça serpentear pela garganta e impregnar-lhe os pulmões. Soltou o ar e sentiu, em seu devaneio, o cheiro forte do tabaco roçar-lhe as narinas. Olhou na direção do sopro e visualizou a imaginária fumaça formando o belo rosto de sua mãe. Recordava que, quando criança, diziam-no que era “a cara da mãe”. Àquela altura ele nada lembrava aquele lindo rosto que vislumbrava. Aliás, muito pouco se via do seu rosto. Os cabelos, há muito sem serem cortados, formavam uma massa de pêlos castanhos que lhe caíam da cabeça em todas as direções, até encontrarem-se um pouco abaixo de seus ombros. A espessa barba que tomava-lhe a face não escondia os seus olhos que ainda mantinham um brilho celestial como o que via toda noite, antes de dormir, ao beijar a desgastada foto de sua mãe que trazia consigo desde que saíra de casa. Tragou outra vez o Marlboro apagado, expirando o ar como se tivesse enfumaçado. Ouviu risos atrás de si. Virou e percebeu um grupo de jovens, homens e mulheres, sorrindo e chamando-o de louco. Os rapazes eram fortes, brutamontes. As moças, lindas, exibiam formas perfeitas em biquínis minúsculos. Uma delas tinha na boca um cigarro com a ponta em cinzas e o andarilho viu ali a chance de materializar a fumaça que imaginara. Levantou e dirigiu-se ao animado grupo que parou de sorrir ao perceber sua aproximação. O mais forte da mesa adiantou-se e postou-se em sua frente.

- O que você quer!?
- Eu quero só o ‘fogo’ aí mano, pra acender o branco aqui, pode ser?
- Que fogo que nada, sai fora ô mendigo nojento! – respondeu por trás da montanha de músculos a loirinha com o cigarro aceso.

O andarilho nada falou. Virou-se para ir embora e, ao dar alguns passos na direção oposta aos jovens, hesitou e voltou. Com um ar solene, apesar da embriaguez e de suas vestes imundas, começou a falar-lhes num tom de voz admirável:

“Vêem, assim é a sua sociedade. Vivo a vagar por esse mundo há bastante tempo e o que aqui vejo é o que há em todo lugar. Este simples isqueiro que aí está, e que me traria, ainda que em devaneio, a minha saudosa mãe, é como o capital nesse vosso desastroso sistema social. Poucos o têm o bastante para viver dignamente, aos muitos que nada tem restam apenas, além do árduo viver, grandes ilusões”.

O que ele teve como resposta foi uma sonora gargalhada, misturada a palavras como “louco”, “maluco” e “bêbado”. O andarilho simplesmente virou-se, tragou seu cigarro apagado, soprou o ar e sorriu para sua mãe que, como ele a vislumbrava, lhe retribuía o sorriso.

terça-feira, maio 10, 2005

Thomas

Chovia bastante e o manto negro da noite tornou-se ainda mais escuro. Levemente embriagado, Thomas dirigia a toda velocidade em meio aquela forte tempestade. A briga no bar de que fora expulso antes de pegar a estrada lhe deixou com poucos arranhões, mas lhe deixou praticamente cego. Não que tenha sido golpeado nos olhos mas no meio da luta seus óculos foram ao chão e não os conseguiu reaver antes de ser defenestrado do Edgar's Place. Nessas condições não enxergava, literalmente, um palmo à sua frente. Ainda assim não hesitou em pisar fundo no acelerador do seu velho fusca que havia trazido de uma de suas peripécias pelo México. Afinal de contas "melhor atirar-me às trevas que esperar esses malditos me atirarem", pensou Thomas ao ver que seus opositores saíam do bar aos tropeções empunhando, cada um, uma arma maior que a outra. Já de primeira marcha engatada escutou o estampido seco do disparo de uma das armas. O vidro traseiro fora feito em pedaços. O tiro foi para Thomas como aquele tiro que dá o juiz de atletismo ao autorizar a partida dos atletas numa corrida de cem metros rasos. O velho fusca disparou numa velocidade inimaginável. E Thomas mergulhou na escuridão. Guiado pelo descomunal medo que lhe gelava até os ossos, seguia a toda velocidade na estrada totalmente escura e deserta. À medida que avançava, a chuva ia abrandando e as estrelas e a lua começavam a iluminar gradativamente o seu caminho. Não conseguia ver nada ao seu redor, apenas enxergava, com muita dificuldade, a estrada à sua frente. O medo ainda mantinha o seu pé direito com toda força sobre o acelerador. Já não chovia mais quando Thomas avistou duas construções, cada uma margeando um lado da estrada. Nem pensou em parar, mas, há poucos metros de alcançá-las, o velho fusca pôs-se a frear e parou exatamente entre as duas grandes e belas casas. Tentou em vão fazer o carro voltar a andar. Assim que desistiu, as portas das casas abriram-se deixando sair, cada uma, uma pessoa disposta a ajudar. Chegaram juntos a Thomas, e cumprimentaram-no muito cordialmente sem fazê-lo entre si. O da casa da esquerda, mais velho, apresentou-se como Peter, vestia-se de forma bem simples. Talvez sua espessa barba negra fosse para compensar a calvície que lhe tomava quase toda a cabeça. O outro era bem mais elegante. Trajava um terno muito bem alinhado, cabelos grisalhos para trás com alguma espécie de produto que o deixava brilhoso. Lembrava um alto executivo. Apresentou-se como Lucius. Tentaram convencer Thomas a ficar nas suas respectivas casas. Ofereceram mil maravilhas, cada um à sua maneira. Peter ofereceu paz, conforto, harmonia. Lucius quis lhe dar festas, diversão. Thomas argumentou que teria tudo isso na sua própria casa. Eles rebateram suas argumentações mas Thomas não cedeu, pediu apenas que lhe ajudassem a consertar seu velho carro. Os dois então, sem dizer mais nada, voltaram para suas casas e assim que bateram a porta, ao mesmo tempo, o motor do fusca começou a funcionar. Thomas, sem perda de tempo, enfiou-se no carro e pôs-se mais uma vez a acelerar. Agora enxergava com mais clareza e no final daquela estrada que o levou, na escuridão, àquelas duas solitárias casas, enfim alcançou a rodovia que o deixaria em casa. Sua mulher e filhos já deveriam estar preocupados, afinal nunca se atrasara tanto para o jantar e já não tinha idéia de quanto tempo havia estado dirigindo, à ele pareciam intermináveis dias. Quilômetros depois já estava contornando a curva que levava à Allan Street, onde morava. Percebeu muitos carros na rua, o que era bem incomum. Uma fila deles tomavam a frente da sua casa. "Que diabos está acontecendo?". Estacionou o fusca no primeiro espaço que encontrou e saiu em disparada para seu confortável lar. Amigos e parentes consolavam-se nos arredores da casa. Thomas, mais uma vez tomado de aflição, perguntou-lhes o que estava acontecendo, mas ninguém o dava atenção. Entrou na sala e pôde ver com os próprios olhos o motivo de tanta tristeza. Sua mulher e filhos choravam inconsolavelmente, Thomas se aproximou e viu a si mesmo, morto, rodeado de flores, dentro de um caixão.

A Força

O que é a vida?
Uma viagem sem volta, só de ida
Humm, e o que é a morte?
Ah, esta só encara quem é forte
Mas não há força que a vença, ou há!?
Sim há, e quando descobrires tal força,
Enfim te libertará
E de que me libertarei?
Da vida ora, e assim não só irá
Mas também poderá voltar
E em vencendo a morte, o que sucederá?
Isso não sei, pois cá estou em vida
Não conheço o lado de lá
E os fracos, que fazer quando a morte apavora?
Ah pobres coitados, não há nada a fazer
Ela impiedosamente os devora
E onde acho essa força? Onde raios ela está?
Está em você mesmo, mas nunca a busque
Ou jamais a encontrará