terça-feira, dezembro 06, 2005

O Andarilho

Caminhava a esmo. Sem rumo, sem direção, sem um porquê. Apenas caminhava. Desde o fatídico dia da morte de sua amada mãe pôs-se a vagar mundo afora. Deixou para trás a vida confortável que levava para tornar-se, conforme seus pensamentos, um filho do mundo. Tinha pouco tempo que atravessara a puberdade quando ficara órfão. Agora, já perto dos trinta anos, não achava que o mundo fora-lhe um bom pai. Estava mais uma vez contemplando o mar, sentado na areia, como sempre fazia quando conseguia embriagar-se. Tirou do bolso de sua imunda e esfarrapada bermuda um dos cigarros que encontrara há pouco numa mesa solitária de uma das barracas da praia. O distraído fumante não esquecera fósforos ou isqueiro. O andarilho pôs o cigarro apagado no canto da boca, tragou o ar puro da praia e imaginou a fumaça serpentear pela garganta e impregnar-lhe os pulmões. Soltou o ar e sentiu, em seu devaneio, o cheiro forte do tabaco roçar-lhe as narinas. Olhou na direção do sopro e visualizou a imaginária fumaça formando o belo rosto de sua mãe. Recordava que, quando criança, diziam-no que era “a cara da mãe”. Àquela altura ele nada lembrava aquele lindo rosto que vislumbrava. Aliás, muito pouco se via do seu rosto. Os cabelos, há muito sem serem cortados, formavam uma massa de pêlos castanhos que lhe caíam da cabeça em todas as direções, até encontrarem-se um pouco abaixo de seus ombros. A espessa barba que tomava-lhe a face não escondia os seus olhos que ainda mantinham um brilho celestial como o que via toda noite, antes de dormir, ao beijar a desgastada foto de sua mãe que trazia consigo desde que saíra de casa. Tragou outra vez o Marlboro apagado, expirando o ar como se tivesse enfumaçado. Ouviu risos atrás de si. Virou e percebeu um grupo de jovens, homens e mulheres, sorrindo e chamando-o de louco. Os rapazes eram fortes, brutamontes. As moças, lindas, exibiam formas perfeitas em biquínis minúsculos. Uma delas tinha na boca um cigarro com a ponta em cinzas e o andarilho viu ali a chance de materializar a fumaça que imaginara. Levantou e dirigiu-se ao animado grupo que parou de sorrir ao perceber sua aproximação. O mais forte da mesa adiantou-se e postou-se em sua frente.

- O que você quer!?
- Eu quero só o ‘fogo’ aí mano, pra acender o branco aqui, pode ser?
- Que fogo que nada, sai fora ô mendigo nojento! – respondeu por trás da montanha de músculos a loirinha com o cigarro aceso.

O andarilho nada falou. Virou-se para ir embora e, ao dar alguns passos na direção oposta aos jovens, hesitou e voltou. Com um ar solene, apesar da embriaguez e de suas vestes imundas, começou a falar-lhes num tom de voz admirável:

“Vêem, assim é a sua sociedade. Vivo a vagar por esse mundo há bastante tempo e o que aqui vejo é o que há em todo lugar. Este simples isqueiro que aí está, e que me traria, ainda que em devaneio, a minha saudosa mãe, é como o capital nesse vosso desastroso sistema social. Poucos o têm o bastante para viver dignamente, aos muitos que nada tem restam apenas, além do árduo viver, grandes ilusões”.

O que ele teve como resposta foi uma sonora gargalhada, misturada a palavras como “louco”, “maluco” e “bêbado”. O andarilho simplesmente virou-se, tragou seu cigarro apagado, soprou o ar e sorriu para sua mãe que, como ele a vislumbrava, lhe retribuía o sorriso.