sábado, junho 03, 2006

Contos do Velho Eddie - A Dança da Morte

Deixe-me contar uma história sobre algo muito estranho que me aconteceu. Certa noite vagava pelos sombrios pantanais como era de costume quando o álcool me dizia que a cama não era bom lugar. Divagava sob a forte luz prata da lua, com o olhar perdido a admirar o brilho intenso das estrelas e não percebi que algo, muito perto de mim, observava cada movimento meu. Alguém correu atrás das árvores e então a mão avalassadora do medo me jogou de joelhos ao chão. Me senti como um rato preso à ratoeira ao notar a sorrateira aproximação de um gato quando vi a figura espectral sair de trás das árvores e avançar na minha direção. Paralisado pelo horror nem relutei quando fui levado a um lugar profano onde logo cairia em desgraça. Lá haviam muitos daqueles vultos e então fui invocado a juntar-me a eles na dança dos mortos. Para dentro do círculo de fogo eu os segui e logo fui atirado ao centro das crepitantes chamas. O tempo parecia estar parado. Eu ainda estava entorpecido pelo medo mas não me ocorreu o ímpeto natural de fugir dali. O fogo não me machucava, mesmo quando eu andava sobre as brasas mais incandecentes. E quando senti que estava em transe meu espírito foi levado de mim. Era algo extraordinário, ah se alguém pudesse ter testemunhado o que se passou naquela noite. E então eu dancei e cantei com eles. Todos tinham a morte em seus olhos. Eram figuras sem vida, mortos-vivos recém chegados do inferno. Meu espírito ria e uivava sob o meu corpo morto-vivo que dançava com os mortos a dança da morte. Então todos nos reunimos no centro do ardente círculo e meu espírito voltou a mim. Eu já não sabia se estava vivo ou morto e então a aflição, percebendo que o transe tinha me deixado, voltou para me visitar. Por sorte um indescrítivel ruído cortou o ar e, chamando atenção daquela horda demoníaca, tirou aqueles olhos mortíferos de cima de mim. Corri como nunca, como o vento, para todas as direções. Só não corri para trás, eu não me atreveria a fazê-lo, continuava sempre à frente. Acho que nunca saberei porque eles me deixaram partir ou o que causou aquele estranho ruído que me permitiu fugir, mas nunca mais dançarei até que eu dance com os mortos.

sexta-feira, maio 19, 2006

A Casa - Parte II - Yellow Submarine

Com o olhar perdido e opaco ele me apontou um canto da grande sala e disse entre os dentes:
- Siga os submarinos amarelos.
Balancei a cabeça negativamente como quem diz "coitado" e me levantei sem esperança nenhuma de ver por ali qualquer coisa amarelada. Fui em direção ao lado mais claro do salão e só agora percebia como era grande. As paredes cobertas de quadros certamente pintados por grandes gênios. Esculturas acotovelando-se aos quatro cantos. O lustre daquele lado, como o astro rei, dava vida ao ambiente inundando-o com sua quente luz. Além da majestosa escada central a sala tinha acessos a vários outros compartimentos através de estreitos corredores e de inúmeras portas das formas mais variadas: madeira, ferro, vidro... mas nenhuma delas era tão imponente quanto a grande porta central. Na forma de uma ferradura, media uns cinco metros de altura e deixaria passar confortavelmente seis fortes homens lado a lado. As trancas metálicas deviam pesar tanto quanto as duas folhas de madeira que a compunham. Atraído pelas letras em tom escuro entalhada no grande portal, me aproximei e então de perto pude ler:
Per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l'etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse il mio alto fattore:
fecemi la divina podestate,
la somma sapienza e 'l primo amore.

Dinanzi a me non fuor cose create
se non etterne, e io etterno duro.
Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate.

Li sem quase nada entender daquela língua estrangeira, mas tive uma forte impressão de já ter visto aqueles versos em algum outro lugar. Pensei em tentar abri-la mas as imensas trancas que a cerravam pareciam gritar em coro para mim que eu não iria conseguir, então dexei-a e olhei com mais confiança para as portas do outro lado. Uma delas devia levar a Liena. Tomei o último trago de rum que ainda me restava e fui em direção a uma das portas. Ao passar por um dos corredores ouvi uma música que logo julguei conhecer. Parei ali e logo me vi cantarolando: "... we all live in a yellow submarine / yellow submarine / yellow submarine...". Olhei para o soturno músico que agora exibia um tímido sorriso. Agradeci-o gestualmente e segui corredor a dentro.
continua...

sexta-feira, março 31, 2006

A Casa - Parte I - Liena

A chuva caía como se estivesse sendo arrancada a força do escuro céu que me cobria e como em todas as três noites anteriores lá estava eu guiando meu velho carro quase às cegas por conta de uma excessiva embriaguez. Estava completamente perdido na estrada que seguia quando o maldito motor insistiu em não querer mais funcionar. Sem tanta preocupação, peguei a garrafa de gim no banco de trás e saí para chuva pensando em conseguir ajuda. Esperei à beira da estrada tempo suficiente para secar meia garrafa mas ninguém apareceu. Nenhum carro, moto, caminhão, carroça, bicicleta, nada, a estrada era um Saara asfaltado. Então decidi seguir em frente, andando, movido a gim. Há algumas centenas de metros depois de onde tinha partido, uma estreita estrada de terra cortava a densa mata que margeava a rodovia e resolvi seguir por ela, com o pensamento de encontrar algum sinal de civilização por ali. A lanterna que eu levava em uma das mãos já começava a falhar quando eu percebi dentro da mata dois pequenos pontos brilhantes que logo se transformaram em quatro, seis, oito, dez... Quando os cinco lobos saíram do mato eu já corria desesperadamente pela estrada enlameada. Sem nenhuma chance de vencê-los na velocidade entrei na mata à procura de abrigo, mas não havia nada ali além de grandiosas árvores. O rosnado do lobo mais adiantado já me gelava os ossos quando caí em um rio até então invisível a mim. As geladas águas do rio me salvaram das feras mas minha
alma parecia querer livrar-se ainda aquela noite do meu corpo porque pouco depois de entrar na água, e arrastado por uma forte correnteza, me vi caindo de uma altíssima queda d'água. Já sem esperanças e tentando em vão agarrar-me à coluna de água que me empurrava para baixo percebi uma corda que descia por arás da cachoeira. Consegui milagrosamente segurar-me na corda, que pela aparência, julguei ser de algum praticante de rapel. Desci pela corda os poucos metros que faltavam para o fim da queda e à certa altura do rio lá embaixo a parede da queda deixou de existir dando entrada para uma ampla caverna.
Segui tateando às escuras pelo rochoso túnel e logo percebi uma tênue luz um pouco a frente. Fui em sua direção e lá chegando percebi que a luz saía por baixo de uma imensa porta de madeira. Empurrei a porta sem convicção mas para minha surpresa ela gentilmente se abriu deixando à mostra um pequeno cômodo, iluminado por tochas, onde se encontrava, procurando algo em uma das estantes dali, um homem gordo de longos bigodes. Perguntei se ele me mataria, ironizando a mim mesmo pelo que já tinha passado aquela noite. Ele respondeu muito gentilmente que não, que na verdade estavam à minha espera. Estranhei um pouco a resposta, mas encarei como sendo bem melhor que um lacônico sim. Ele me conduziu a um rudimentar elevador a um canto da saleta e o fez subir sabe-se lá quantos andares. Quando o elevador parou saímos em uma ampla sala onde trigêmeos, desafiando Isaac Newton, tocavam música clássica sentados no teto. O mordomo me conduziu a uma cadeira e pediu que eu esperasse dizendo que logo a casa iria estar repleta de convidados. Perguntei o que tinha para beber e diante do "qualquer coisa que eu desejasse" escolhi um rum de fabricação pirata da época das grandes navegações. Ele bem eficiente me trouxe além da bebida, roupas limpas e secas. Troquei de roupas e fiquei ali na sala, ouvindo o agradável som que vinha do teto e saboreando o rum com a esperança da casa se encher de interessantes convidados.

Depois de alguns goles da fortíssima bebida que o gentil mordomo me trouxera vejo-o recebendo na grande porta principal uma mulher. De onde eu estava, a uma certa distância da porta, e ajudado ainda também pelo álcool, julguei estar vendo aquela que amei. "Ah, como era bela minha amada! Acho que os deuses a levaram por puro capricho. Não permitiriam a um simples mortal gozar do amor de tão bela mulher". Quando o mordomo deixou a mulher que me trouxe saudosas lembranças de minha finada noiva pude olhá-la com mais clareza e quando o fiz a pulsação no meu peito esquerdo saiu para passear. Atordoado, nem conseguia me mexer ao ver novamente aquele rosto que, como o de Helena, lançaria mil barcos ao mar. Era ela, sim, ela! E trajava o vestido que eu havia lhe dado há poucos meses para o nosso casamento. Mas como podia ser? Estava bêbado, não louco! Eu a vi, morta, dentro de um caixão. Eu chorei sobre seu corpo pálido. Eu não durmo desde que ela se foi. E agora a via, tão viva como fora em vida. Ela veio em minha direção, e a cada passo que dava, mais transtornado eu ficava. Tentei levantar para abraçá-la, mas minhas pernas não obedeceram. Tentei falar-lhe, mas como as pernas, minha boca não se mexeu. Ela chegou bem perto e sentou-se ao meu lado. Encarei-a com um misto de horror e felicidade, sem saber o que fazer. Um dos trigêmeos que tocavam no teto sentou-se perto de nós dois e ao fazê-lo me desviou um pouco daquele eterno instante de agonia. Olhei para ele e imediatamente voltei-me para ela. Duas palavras saíram como que fugindo da minha boca:
- É você!?

O espectro de Liena, conforme julguei ser aquela aparição, me deixou sem resposta. Apenas me olhava fixamente ansiando por alguma coisa mais expressiva que o 'é você'. Eu simplesmente não sabia o que dizer. Seus olhos negros de outrora brilhantes agora tinham um aspecto sombrio, mórbido, assustador. E ela os atirava como flecha sobre os meus que começaram a inundarem-se em lágrimas brotadas em emoções indescritíveis. Quando senti que ia deixar escapar mais umas palavras veio até nós um rapaz, aparentando um mochileiro, e perguntou alguma coisa que eu em meio aquela tempestade cerebral não pude entender. Ele virou-se para o músico que sentara-se ali perto, mas este, meio que em transe, também pareceu não lhe entender. Ele virou-se e no mesmo instante veio caindo alguém da escada, gritando como um louco. O mochileiro pareceu ir lhe prestar algum auxílio mas logo subiu as escadas. Perdido nesses instantes entre a chegada do mochileiro e a queda na escada voltei-me para a fantamasgórica Liena. Mas pra onde ela foi!? Já não estava ao meu lado. Enxuguei as lágrimas e olhei ao redor, mas nem sinal dela por ali. Acenei para o músico que ainda estava ali, meio que nas nuvens, e perguntei:
- Viu pra onde raios ela foi?
continua...