terça-feira, fevereiro 01, 2005

Conto de Natal

O muro alto, visto de fora, era muito mais agradável para Remo. Estivera confinado por trás daquela muralha desde o início da puberdade. Agora, já perto dos trinta anos, estava livre. Durante todo o tempo de cárcere pensou nesse dia. Teria de volta a possibilidade de vê-la mais uma vez e isso não lhe deixava os pensamentos. A obsessão doentia, que por ela alimentava, causara-lhe todo aquele tempo de reclusão, e, apesar da aparente sanidade, Remo ainda era, literalmente, louco por ela. Os médicos do hospital psiquiátrico que o juiz lhe designou como morada estavam convencidos de que ele não representava mais perigo algum à sociedade. Dessa forma concederam alta àquele jovem homem de mediana estatura, cabelos negros, olhos pequenos quase sempre escondidos por trás de um óculos de grau acentuado. Sua barba, espessa, mas arrumada, contrastava com os cabelos revoltos que pendiam-lhe da cabeça. O andar, meio desajeitado, dava-lhe um aspecto de quem acabara de beber uma boa dose de um uísque sem gelo. Colocaram-no em um táxi que o conduziu ao albergue Santa Marta, afastado da cidade. Remo já não tinha mais família. Pelo menos assim considerava, unanimemente, seu numeroso conjunto de parentes, dentre eles pais e irmãos. Era 24 de dezembro e o albergue se encontrava todo enfeitado para o Natal. O salão comum estava já com uma mesa pilhada de comida, pronta para a ceia, quando Remo entrou no seu quarto. Tomou um bom banho e arrumou-se com a idéia fixa na cabeça de que a encontraria ainda esta noite. Apesar dos vários protestos de seus futuros amigos do albergue, Remo não passaria ali o Natal. Passaria com ela. Saiu, obstinado, decidido a encontrá-la. Sequer pensou na possibilidade de não encontrá-la o que era bem provável, afinal de contas já haviam se passado anos desde a última vez em que a viu. Mas, ainda assim tinha certeza que a encontraria. Tomou um ônibus, que após cruzar a cidade de uma extremidade a outra, deixou Remo na rua onde ela se encontrava. Já era tarde, e as casas, enfeitadas, abrigavam as festas natalinas. Com o coração mil, Remo avistou a pequena casa onde ela deveria estar. Ainda estava ali, em cima da árvore do quintal de seu antigo lar, a casinha amarela. Não se conteve de excitação. Correu, pulou como um gato por sobre a pequena cerca que rodeava sua antiga casa. Em segundos venceu a escada, pregada ao tronco da árvore, que dava acesso à entrada da casinha. Nada habitava a pequena construção de madeira. Ela não estava mais lá. Remo caiu em desgraça. Gritou, chorou e chorou e gritou. A escuridão da pequena casa o consolou e Remo, arruinado, desceu as escadas, na ânsia de voltar para o albergue onde poderia afogar suas mágoas. Agora passou pelas janelas mais devagar e, sem ser notado, notou a alegria que existia em sua casa de outrora. E ficou ali, a observar seus familiares. Sua mãe, como ainda estava bonita e nova. Seu pai, sempre um beberrão, brindava a cada segundo com seus tios glutões. A irmã, com um filho no colo. Olhou, saudosamente, cada uma das pessoas que ali estavam a se divertir. Juntaram-se todos no meio da sala, em volta de uma caixa abarrotada de presentes. Parecia que alguma espécie de jogo ia começar. Remo, atento, não perdia nada. Alguém pediu uma caneta. Precisavam escrever algo, mas não tinham papel. Então Rômulo, irmão mais novo de Remo, se prontificou a pegar papel no seu quarto. Voltou com um rolo de papel, algo como um pôster. Cada um da grande roda rasgou um pedaço do pôster. A caneta então foi passada de mão em mão onde cada um escrevia alguma coisa no seu pequeno pedaço de papel. As pessoas o faziam com tanta alegria que fizeram até Remo abrir um tímido sorriso. Mas logo foi tomado de uma fúria inenarrável. Tentando ler o que estava escrito no papel de sua avó, que estava perto da janela, a viu. Era ela. Sem dúvida nenhuma era ela. Feita em pedaços. Haviam a feito em pedaços. Sua avó segurava exatamente a sua boca, a parte que Remo mais venerava. Tomado de cólera, ele invadiu a casa, e sem dar tempo de reação para as pessoas que ali se confraternizavam, correu para o armário onde seu pai guardava duas pistolas sempre carregadas. Sem titubear, disparou contra todas as quinze pessoas que se encontravam na sala. Crianças, adultos e idosos. Quando, ainda bebê, Rômulo rasgou um minúsculo pedaço do pôster de seu irmão mais velho e sofrera violentíssimas agressões, mas a sua vida, milagrosamente, foi salva. Dessa vez ninguém se salvou. Remo, revirando os corpos, recolheu os pedaços de papel banhados de sangue. Juntou todos, como um quebra-cabeças. E ali a tinha novamente, linda, bela, sempre a sorrir. No canto inferior direito do pôster podia-se ler em letras douradas: “Marilyn Monroe”.

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